Guadalajara, 21 de junho de 1986.
Sob um sol escaldante, capaz de aquecer até o mais frio dos homens, um nome passaria a ecoar na cabeça de milhões de pessoas e ingressaria para a eternidade. Era a hora de Joël Bats entrar para a história de heróis (ou vilões) das Copas do Mundo.
Poucos sabiam quem era aquele goleiro de cabelos cacheados e rebeldes, de quase 30 anos e que acabara de ser campeão francês com o PSG. Parecia importar pouco, ou quase nada, o fato de vestir a camisa 1 da França desde 1983, um ano depois de ter vencido um câncer no testículo. Foi exatamente a doença que lhe deu forças para pensar na vida, entrar no ramo da poesia e virar até compositor de músicas.
Também parecia acrescentar pouco a sua história ter sido titular no título europeu de 1984, mesmo tendo abandonado a concentração na véspera da final com Philippe Bergeroo e Bruno Bellone para pescar.
Havia uma razão para Bats ser renegado desta maneira. Num time tão talentoso, com Dominic Rocheteau, Luis Fernandez, Jean-Pierre Papin, Alain Giresse, Jean Tigana e, claro, Michel Platini, por que alguém se importaria com o goleiro?
Bom, havendo consideração ou não pela figura de Joël Bats, ele vinha fazendo bem seu trabalho e afastando qualquer desconfiança quanto a quem era realmente o goleiro francês. Entre 1983 e a terceira rodada da fase de grupos da Eurocopa de 1984, por exemplo, somou sete jogos consecutivos sem ser vazado. Até aquele dia 21 de junho, acumulou 13 partidas sem sofrer gols, tendo emendado duas séries de cinco jogos seguidos.
No México, Joël Bats vinha tendo uma Copa do Mundo tranquila. Em nenhum jogo foi muito exigido e fora vencido apenas uma vez, num tiro de rara felicidade do soviético Vasyl Rats, no empate por 1 a 1 na segunda rodada da fase de grupos. Canadá, Hungria e até a campeã mundial Itália (eliminada pelos franceses) não conseguiram vencer o goleiro do Paris Saint-Germain.
Uma certa seleção amarela estaria pela frente nas quartas-de-final do Mundial. E que árdua missão teria o Brasil de Telê Santana! Mais do que o campeão europeu, a equipe canarinho, tentando se livrar da frustração de 1982 na Espanha, teria pela frente uma parede chamada Joël Bats.
Mas missão dada é missão cumprida. Pelo menos foi assim durante boa parte da primeira etapa. Com Michel Platini discreto em campo, coube aos brasileiros tomarem as rédeas da partida.
Bats, que foi mero espectador nos outros jogos franceses, encontrou um Careca inspirado. O atacante do São Paulo criou ao menos três chances antes de derrota-lo, aos 17 minutos. Após uma troca de passes caprichada entre Müller, Josimar e o próprio Careca, veio o gol que mostrava a França que não teriam vida fácil. Minutos depois, Müller ainda acertou uma bola na trave.
Os franceses sentiram o baque e não conseguiam pressionar. Ao menos cantavam uma jogada: os ataques pela direita, ora com Amoros, ora com Rocheteau, mostravam o caminho a ser seguido. E foi de um cruzamento de Rocheteau que o grande Michel Platini, aos 41, concluiu em gol após vacilo brasileiro.
Um alívio e tanto para Bats, que foi para o intervalo com a sensação de que poderia estar perdendo o jogo.
Zico coloca Bats na história
A etapa final ganhou novos contornos. Sem tanta perna, mas querendo evitar mais 30 minutos de prorrogação, as duas seleções buscavam o gol. Bats passou a ser exigido, fez defesas importantes e viu novamente Careca incomodar ao acertar uma cabeçada no travessão.
Enquanto o jogo rolava, a torcida brasileira gritava insistentemente o nome de Zico. Longe da melhor forma física, o Galinho de Quintino ficou no banco ao longo da competição. Não foi diferente no Jalisco. Aos 26 minutos, porém, Telê atendeu ao clamor do público e colocou o camisa 10 em campo, na vaga de um sumido Müller.
Zico precisou de um toque na bola para justificar os pedidos da torcida. Ao receber próximo à risca central, observou a passagem de Branco e o deixou livre na grande área. Em uma saída desesperada, e até desnecessária, Bats cometeu pênalti e a vantagem brasileira recaia sob os pés do camisa 10 brasileiro.
Era Bats contra Zico. O goleiro francês pouco badalado, mas muito eficiente, frente o craque do Brasil, ídolo do clube de maior torcida do país e grande esperança para a conquista do tetra.
Bats sequer esboçou uma reação. Parou em cima da linha, colocou as mãos sobre os joelhos e passou a olhar fixamente para a bola. Sem firulas. Sem palminhas. Sem pulinhos sobre a linha. Sem apontar o canto. Só o olhar fixo e compenetrado de quem sabia que poderia entrar para a história naquele momento.
O tiro forte, a meia-altura e quase no centro de Zico parou em Bats. Uma defesa mágica, longe de ser uma das mais difíceis ou plásticas, mas suficiente para colocar aquele goleiro de cachos saltitantes, de nome curto e fácil pronúncia, entra os grandes carrascos do futebol brasileiro.
Bats viria ainda a fazer um milagre em uma cabeçada à queima roupa do próprio Zico, na pequena área, e catar um pênalti de Sócrates, já na disputa por penais, mas foi aquela defesa no tempo normal, no emblemático chute do 10 brasileiro, que colocaria o nome do francês em todos os jornais no dia seguinte.
O goleiro dos Bleus até falharia na semifinal contra a Alemanha Ocidental, numa cobrança de falta forte, mas em cima do próprio corpo, executada por Andreas Brehme, só que a história já estava escrita, mesmo com o terceiro lugar na Copa. Telê, que anos depois faria história pelo São Paulo, viu o sonho mundial pela seleção naufragar. Zico, ídolo nacional, não conseguiu dar o passo além que tanto sonhou.
No mínimo irônico que o grande herói francês naquela tarde fosse exatamente o goleiro. Em meio a Platini, Rocheteau, Fernandez, Giresse, Tigana e outros tantos que formaram uma das mais talentosas gerações que a França já viu, foi Bats quem escreveu seu nome entre os grandes dos mundiais naquele junho de 1986.