São muitos os fatores que podem fazer uma equipe conquistar um título nacional em uma temporada de pontos corridos. Desde a motivos simples, como ter um time mais forte com um elenco encorpado, a razões mais detalhistas, como a regularidade ao longo do ano. Mas na temporada 1997/98 do Campeonato Francês, o troféu foi pulando de mãos em mãos e quando caiu no colo do Lens, não teve mais outros donos graças a uma decisiva arrancada, marcada por vitórias em confrontos diretos.
Até hoje, o troféu erguido em 1998 foi o único da história do clube, que sempre esteve na gangorra do futebol francês. Caiu, subiu, competiu, caiu de novo, subiu mais uma vez… Mas nesse vai e vem, nada se compara ao que fez no ano em que a França se preparava para sediar a Copa do Mundo. O time histórico de Daniel Leclercq fez o que muitos achavam improvável, levou uma pequena cidade do norte do país ao êxtase e celebrou aquele que é, até hoje, o maior título do clube Sangue e Ouro.
Relembre a trajetória da equipe:
Hora do reajuste
Chegávamos a temporada que culminaria com a Copa do Mundo a ser disputada na França. E o norte do país, em especial a região de Lens, nutria grande expectativa com a disputa do Mundial. Isso porque o estádio Félix Bollaert passava por reformas para abrigar jogos do evento. Fora isso, o Lens, dono do estádio, nutria o desejo de fazer uma campanha melhor do que a temporada anterior.
Em 1996/97, o time Sangue e Ouro passou apuros e, em determinado momento do Campeonato Francês correu contra o rebaixamento. Essa queda só não ocorreu porque o presidente do clube, Gervais Martel, buscou Roger Lemerre para assumir o time nas rodadas finais da temporada. Ele tirou o Lens da 16ª colocação e deixou em 13º, são e salvo na elite nacional.
Entretanto, a Copa do Mundo, que tanto animava a região do Lens, foi a mesma que forçou o primeiro golpe ao time. Lemerre foi chamado por Aimé Jacquet para integrar a comissão técnica que comandaria a França no Mundial e deu adeus ao clube. O bastão foi entregue nas mãos de Daniel Leclercq, então auxiliar técnico lensois.

Jogador histórico do Lens entre os anos 70 e 80, Leclercq tinha pouquíssima vivência como treinador. Chegou a dirigir o Valenciennes em 1986/87, mas, de resto, apenas breves experiências em clubes de pouquíssima expressão. Ainda assim, Martel entendeu que valia a aposta com um objetivo claro: chegar na Copa da UEFA, como lembrou o atacante Wagneau Eloi.
“No início da temporada, o presidente fez um discurso dizendo que uma classificação para a Copa da UEFA seria muito boa. O treinador esperou o presidente sair e nos disse: ‘Este é um discurso com o qual não posso concordar. Todos os jogadores que estão aqui, eu os escolhi, tenho confiança no meu grupo. Eu quero ser um campeão'”, recordou ao So Foot.
Para reforçar o plantel de Leclercq, chegaram ao Lens o iugoslavo Anto Drobnjak, credenciado pelos 18 gols na temporada anterior pelo Bastia, e Stéphane Ziani, do Bordeaux. O zagueiro José-Karl Pierre-Fanfan, do Dunkerque, também foi contratado, enquanto Eloi e Wilson Oruma retornaram de empréstimo ao Nancy. Eles se juntaram a outros nomes já estabelecidos do plantel, como os zagueiros Frédéric Déhu e Jean-Guy Wallemme, o lateral direito Eric Sikora, além do atacante Tony Vairelles e do meia Vladimir Smicer.
Começo empolgante
A temporada inicia e, logo na estreia, o Lens apresentou suas credenciais. Em casa, diante do Auxerre, venceu por 3 a 0 e mostrou aos rivais um pouco da força que teria jogando no Felix Bollaert. Ao término das primeiras dez rodadas, o RCL acumularia ainda vitórias sobre Marseille, Toulouse, Lyon e Châteauroux, essas últimas três em sequência e já ficava nas cabeças da classificação – era o 5º colocado, com 18 pontos, cinco atrás do líder Metz.

Dessas quatro vitórias nas primeiras dez partidas, certamente a mais marcante foi a conquistada sobre o OM, em pleno Vélodrome, que também estava em obras para a Copa do Mundo. Treinado por Rolland Courbis, o Marseille era um dos favoritos da temporada, com um time pesado composto por peças como o goleiro alemão Andreas Köpke e os selecionáveis Laurent Blanc e Claude Makélélé. Um dos selecionáveis, aliás, foi o responsável por abrir o placar. Blanc, após bate e rebate na grande área, abriu a contagem logo aos 5 minutos.
Só que o Lens contava com um goleador que marcaria história naquela temporada. Estamos falando de Anto Drobnjak. O iugoslavo já vinha de boas temporadas na sua terra natal e também na França, vestindo a camisa do Bastia. Para completar, veio um estímulo extra do lado rival. “Quando partimos para Marseille, na semana anterior à partida, Rolland Courbis disse algo a um jornalista como: ‘Drobnjak? Ele tem metros quadrados, ele não é um jogador de futebol’. O treinador colocou o artigo no vestiário e isso galvanizou o grupo”, relembrou Eloi.
Naquela noite, no Vélodrome, Drobnjak estava especialmente inspirado. Marcou dois gols de cabeça e outro de pênalti, ajudando a decidir aquele confronto, que teria ainda um belo gol de falta de Xavier Gravelaine, para o Marseille, entre o segundo e o terceiro gol de Anto.
Quando falo de Drobnjak “ajudou a decidir” aquele jogo, é porque não podemos deixar de lado o papel de Guillaume Warmuz. O histórico goleiro do Lens, que estava no clube desde 1992, ainda defendeu um pênalti cobrado por Blanc – ok, ele se adiantou bastante – e segurou o 3 a 2 no marcador.
“Senti uma emoção especial com o triplé em Marseille, especialmente porque sofri uma lesão nas costas antes da partida. Só havia treinado no dia anterior ao jogo. Ainda assim, Leclercq me disse: ‘Vá em frente, se aqueça. Se puder jogar, ótimo, se não puder, paciência’”, revelou Drobnjak, em 2020, ao Foot d’Avant.
Apesar do bom retrospecto nas primeiras dez rodadas da temporada, o Lens exalou instabilidade nas semanas seguintes e não conseguiu progredir na classificação até o término de 1997. Até a 21ª rodada – última do ano – foram seis vitórias, quatro derrotas e um empate. Obviamente, não foi um retrospecto ruim, mas insuficiente para tirar da 5ª colocação, com 37 pontos, cinco atrás do Metz, que seguia na liderança.
O retrato dessa instabilidade veio na 16ª rodada, diante do Cannes, que segurava a lanterna da competição. Em um intervalo de 11 minutos, o Lens abriu 4 a 0 antes dos 25 minutos do primeiro tempo. De maneira heróica, os visitantes arrancaram um 4 a 4 antes dos 35 da etapa final, com três gols do suíço Marco Grassi. A sorte lensois foi um pênalti minutos depois do empate que foi convertido, garantindo uma suada vitória por 5 a 4.
Pior do que isso foram os confrontos diretos durante a caminhada, que desenhavam, naquele momento, uma razoável distância na corrida pela taça. Apesar de ter empatado com o próprio Metz, o time de Leclercq foi facilmente batido por Bordeaux e PSG, que estavam em colocações acima na tabela de classificação. Tanto o 3 a 0 dos Girondins, quanto o 2 a 0 dos parisienses foram placares enganosos, haja vista o amplo domínio do qual o Lens sofreu, escapando de goleadas maiores.
Chega o ano da Copa
Nossa história chega agora a 1998, o ano da Copa do Mundo da França. Mas sabe aquela velha máxima: “ano novo, vida nova”? Bom, pro Lens, não começou assim. Logo na primeira partida do Francês, derrota para o Nantes pela contagem mínima. A reação veio com vitórias seguidas contra Guingamp, Toulouse e Lyon, que até encurtaram a distância para o topo da tabela para um ponto, mas logo veio uma derrota para o Châteauroux e a diferença ficou em quatro.
Esse revés, porém, marcou a verdadeira virada de chave do Lens. Dali em diante, não saberia mais o que era perder uma partida de Campeonato Francês. Bordeaux, Monaco e PSG foram os primeiros a sentir o peso da fase extremamente positiva dos comandados de Leclercq.
Com a sequência positiva, o Lens chegou aos 55 pontos após 29 rodadas e ocupava a vice-liderança, atrás apenas do Metz, que tinha um a mais. Curiosamente, a trigésima volta do Campeonato Francês reservou o encontro entre os dois times que disputavam o topo da tabela de classificação.
Enfim, líderes

O confronto entre Metz e Lens soava, sim, como uma final antecipada. Frente a frente, o time que liderou a competição quase de ponta a ponta com o novo concorrente ao troféu. Se os Sangue e Ouro passaram boa parte da temporada correndo atrás da máquina, os Granadas, de Lionel Létizi, Rigobert Song e Robert Pirès assumiram a liderança na 3ª rodada e soltaram ela poucas vezes ao longo do ano.
O jogo iniciou no Saint-Symphorien e, desde o começo, o Lens assumiu as rédeas do confronto. Encontrava espaços no meio-campo e tentava assustar Létizi com chutes de média e longa distância. Mas foi num contra-ataque que os visitantes balançaram as redes. Tudo isso começando em uma jogada de escanteio para o Metz, aos 22 minutos.
O tiro de esquina foi nas mãos de Warmuz, que conectou o ataque em velocidade. Ziani atravessou a bola da direita para a esquerda e Smicer ganhou campo aberto para correr. O cruzamento feito pelo tcheco foi preciso e achou Drobnjak, que se antecipou a Song e desviou para o fundo das redes.
O gol que abriu a contagem foi o sinal de que as coisas não terminariam bem para os anfitriões, que passaram a ser ainda mais envolvidos por Foé, Smicer e companhia limitada. E foi assim, cinco minutos depois do primeiro gol, que veio o golpe de misericórdia lensois. Um lateral cobrado na linha de fundo achou Smicer, que se esforçou para evitar a saída, chutando pro meio da área. Létizi se esforçou para evitar o gol e deixou a bola viva na pequena área para Drobnjak, que não desperdiçou a chance, balançou as redes e chegou ao 12º tento na temporada.
Os dois gols saindo tão cedo foram duros golpes ao Metz, que só ameaçou na primeira etapa em uma cobrança de falta de Bruno Rodríguez, nos acréscimos da arbitragem. O cenário pouco mudou no tempo final. Aliás, nos 45 minutos derradeiros da partida, o Lens foi quem mais se aproximou do gol em seus ferozes contra-ataques e o 2 a 0 foi sustentado com alguma tranquilidade.
A vitória no duelo direto foi o impulso final para uma caminhada que terminaria com a taça em mãos. Nas rodadas seguintes vieram vitórias sem percalços sobre o Rennes (3 a 0), Cannes (2 a 0) e Bastia (5 a 1). Essa sequência de dez gols em três jogos também expôs a toda França quem eram os protagonistas daquele time. Drobnjak e Smicer marcaram dois cada, enquanto Vairelles fez quatro.
Com dois pontos de vantagem e seis gols a frente no saldo, a taça estava cada vez mais próxima.
Tropeço antes do fim
Em paralelo a campanha no Francês, o Lens foi desbancando rival por rival na Copa da França. Deixou pelo caminho Le Havre, Epinal, Argentan, Caen e, por último, o Lyon até chegar a grande decisão diante do Paris Saint-Germain. Aquele seria o primeiro troféu a ser disputado no novo Stade de France, preparado para o Mundial que se aproximava.
Porém, diferente do que andava ocorrendo no Francês, o time de Leclercq não conseguiu imprimir o mesmo ritmo e foi batido pelo rival da capital, que se despediu naquele dia do ídolo Raí. O brasileiro, inclusive, marcou um dos dois gols da vitória por 2 a 1, que deixou o Lens com o vice antes de decidir o campeonato.
A sorte do Lens foi o tempo. Uma semana. Isso foi suficiente para lamber as feridas, esquecer a derrota e focar na rodada final do Francês, que seria fora de casa, no Abbé Deschamps, contra o Auxerre. O Metz, único que poderia tirar o título, receberia o Lyon.
Entretanto, com menos de 15 minutos, o fantasma do “quase” começou a assombrar o Lens. Isso porque o Metz logo cedo abriu o placar contra o Lyon, com seu goleador, Bruno Rodríguez, que terminou a temporada com 13 gols. Ele aproveitou um corte errado da defesa do Lyon e balançou as redes.
No Abbé Deschamps, o time Sangue e Ouro até chegou a abrir o placar com Lachor, que estava em posição de impedimento e viu a jogada ser invalidada. Sorte do Auxerre, que conseguiu balançar as redes aos 14 minutos. Lamouchi, num chute da entrada da área, venceu Warmuz e fez um gol que valeu por dois: estava valendo a vitória do AJA e o título para o Metz.
O que se viu dali em diante foi uma caixa de tensão. De um lado, um Lens que martelava insistentemente atrás de um gol. Do outro, um Metz que ficava na dúvida de se lançar ao ataque para buscar um saldo que lhe valesse a taça num eventual empate no Abbé Deschamps. Em meio a isso, um desarranjo do horário. O segundo tempo no Saint-Symphorien começou antes e o time de Leclercq saberia exatamente o que fazer.
Com tanta tensão no ar, somente a calma e a categoria para aliviar tudo. Aí apareceu Frederic Dehu. Na altura do meio-campo, o defensor achou espaço em uma finta e conseguiu fazer um passe de rara precisão para Lachor. Agora em posição legal, ele avançou por trás da zaga e tocou na saída do goleiro, igualando a contagem.

A sorte havia virado. Ou o Metz tirava o saldo de cinco gols ou começasse a rezar para o Auxerre arrancar a vitória.
Não aconteceu nem uma coisa, nem outra. Aconteceu aquilo que era improvável no começo da temporada, mas que ficou cada vez mais palpável à medida que a competição avançava. Os placares se mantiveram e a taça foi para o norte da França, de posse do Lens, de Daniel Leclercq.
Horas depois, Leclercq e companhia limitada estavam de volta para casa, abraçados por milhares de torcedores que foram recebê-los no aeroporto. A chegada ao Félix Bollaert foi durante a madrugada e, ainda assim, mais de 30 mil pessoas ocupavam as arquibancadas para festejar um momento único e que ficou marcado para a eternidade do futebol francês. A taça era do Lens. Pela primeira vez e para ninguém esquecer.
Time base
