O século XXI tem sido de relevância para o Lille, que deixou de ser um clube inexpressivo na França e se tornou um dos principais clubes do país. Fruto disso foram as boas campanhas na Ligue 1 e a projeção que deu a atletas como Eden Hazard, Victor Osimhen e Rafael Leão. Esses dois últimos, aliás, vieram na esteira de um time que quase colapsou e ficou perto de disputar a segunda divisão nacional.
Isso aconteceu na temporada 2017/18. Pensando alto ao buscar Marcelo ‘El Loco’ Bielsa, os Dogues rejuvenesceram o elenco e abriram mão de atletas veteranos e identificados com o clube. O projeto foi fracassado e quase terminou em rebaixamento, que só foi evitado em um inesquecível confronto direto contra o Toulouse, na antepenúltima rodada da Ligue 1.
O caos de ‘El Loco’
O cenário era de empolgação no Lille. Recém adquirido por Gérard Lopez, o clube teria a sua disposição no banco de reservas Marcelo Bielsa, que após o bom trabalho no Olympique de Marseille, voltava à França para capitanear um ousado projeto no norte do país.
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Foto: Divulgação / Lille
Logo de cara, o argentino impôs uma dura ruptura que provocou cicatrizes para a sequência da temporada. Lideranças históricas do elenco, como o goleiro Vincent Enyeama, o defensor Franck Béria e o volante Rio Mavuba foram dispensados. Segundo a imprensa francesa, eles e outros atletas foram avisados da dispensa via SMS.
“Tudo estava bem até que ele (Bielsa) chegou. Eu estava em tratamento quando ele chegou ao clube. Na primeira vez que nos encontramos, eu estava no hospital. Ele entrou e nem mesmo disse ‘olá’ para mim. Seus assistentes vieram mais tarde para me ver. No dia seguinte, ninguém falou comigo e foi assim que o fim começou para mim no Lille. Talvez Bielsa não gostasse de mim, mas ele nunca disse isso. No entanto, sua atitude em relação a mim foi terrível”, revelou Enyeama, anos mais tarde, ao La Voix du Nord. O goleiro nigeriano fez mais de 100 jogos com a camisa do Lille.
Para mandar essas bandeiras embora, a ideia era clara: rejuvenescer o elenco. Para isso, o clube veio ao Brasil e tirou Thiago Mendes e Luiz Araújo do São Paulo e ainda pagou 14 milhões de euros ao Santos por Thiago Maia, contratação mais cara da história do clube na época. Além disso, Nicolas Pépé reforçou ao ataque, enquanto Mike Maignan foi alçado à titularidade com a dispensa de Enyeama. No fim das contas, os Dogues ficaram com o elenco mais jovem das cinco principais ligas europeias.
O começo até foi promissor, com uma vitória por 3 a 0 sobre o Nantes, mas o tempo foi passando, a falta de evolução ficou notória e o “pacote Bielsa” começou a ficar caro demais para o Lille. Um exemplo disso veio logo na 2ª rodada, contra o Strasbourg. O argentino precisou fazer duas substituições no primeiro tempo por problemas físicos e ainda sacou Ballo-Touré antes do intervalo, por temer uma expulsão. Não passou pela cabeça de Bielsa a possibilidade de perder mais algum lesionado ou, pior, ter algum expulso na etapa final. Quis destino que o cartão vermelho viesse logo para o goleiro Maignan, ainda aos 18 minutos. O Lille, que empatava sem gols, terminou o jogo derrotado por 3 a 0 e com dois jogadores de linha se dividindo no gol: De Préville, que tomou o primeiro gol, e Amadou, que sofreu os outros dois.
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O tempo foi passando, as discussões públicas na imprensa apareceram, a exemplo das notícias de jogadores descontentes com os métodos do argentino. El Loco durou apenas até a 13ª rodada. Foi “suspenso” do cargo após uma acachapante derrota por 3 a 0 para o Amiens, fora de casa, com os Dogues na antepenúltima colocação do Francês. Nos tribunais, as discussões entre Bielsa e o Lille correram por anos quanto ao fim do vínculo.
Até o final do ano, uma espécie de célula técnica dirigiu o time até que o treinador efetivo fosse contratado. Foram três derrotas, duas vitórias e um empate nesse período, que manteve os Dogues dentro da zona de repescagem ao término do primeiro turno. Próximo dessa disputa estava justamente o Toulouse, então treinado por Pascal Dupraz. O TFC estava uma posição acima dos Dogues, mas com os mesmos 19 pontos.
Novos treinadores
Chega o ano novo e, com ele, inicia também a caminhada de Christophe Galtier no Lille. Após o sucesso no Saint-Étienne, recuperando a competitividade do clube e conquistando, inclusive, o título da Copa da Liga, o treinador chegou ao norte da França com a missão de evitar um impensável rebaixamento.
Galtier, de cara, arrancou importante vitória sobre o Caen, na primeira partida de Ligue 1 em 2018, mas tropeços contra Rennes e Troyes fizeram com que o time não saísse do lugar em janeiro, fechando o primeiro mês do ano na 18ª colocação. Já estava à frente do Toulouse, que começou a patinar e se desfez de Dupraz. Além dos resultados ruins, ele sofria com problemas de saúde e precisou se afastar do futebol por algum tempo. Mickaël Devève, então auxiliar, foi efetivado na função.
As mudanças nas comissões técnicas serviram para colocar os dois times na linha, mas não para fugir da zona de queda. Tanto Lille, quanto Toulouse chegaram até a 15ª colocação, mas logo voltaram para as últimas colocações. O LOSC, inclusive, entrou numa terrível espiral negativa entre fevereiro e abril, período em que emendou impressionantes 11 jogos sem vitórias. Essa série só foi quebrada, exatamente, uma semana antes do encontro entre os dois times.
Pépé e Bissouma: protagonistas
Chegava o dia 36ª rodada e do aguardado encontro entre Toulouse e Lille, no Municipal de Toulouse. O Téfécé vinha de dois jogos seguidos fora de casa e sem vencer: empatou com o Caen e perdeu de virada para o Rennes, por 2 a 1. Ainda assim, fora da zona de rebaixamento, tinha a faca e o queijo na mão para deixar os Dogues em maus lençóis, já que estavam dois pontos à frente na classificação.
Para este decisivo confronto, Galtier mexeu na defesa do Lille, que tinha vencido o Metz na rodada anterior. O capitão Soumaoro e o brasileiro Thiago Maia deixaram a formação inicial para os ingressos de Dabila e Amadou. O restante do time tinha a mesma base, com a espinha dorsal tendo Maignan na meta e a trinca de meias formada por Araújo, Benzia e Pépé. No Toulouse, as mudanças foram do meio pra frente. Somália, Blin e Jean foram as novidades da formação de Debève.
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O jogo começou e logo cedo o Lille se colocou em vantagem. Uma rápida troca de passes na intermediária terminou com Malcuit aparecendo na grande área para tentar um cruzamento rasteiro. O lateral direito encontrou Pépé, que desviou de calcanhar, tirou do alcance de Lafont e abriu o placar.
Não tardou e o empate veio, com Jean. Quatro minutos depois do gol inicial, uma falta lateral encontrou o camisa 8 livre na área para chutar no contrapé de Maignan e igualar a contagem antes dos 10.
Sofrendo com a bola área do Téfécé, o Lille tomou a virada antes do apito final para o intervalo. Após cruzamento na grande área, a zaga não conseguiu afastar o perigo e a bola caiu nos pés de Julien, que tocou na saída do goleiro e virou o placar para 2 a 1, resultado que deixava os Dogues próximos, inclusive, do rebaixamento, ainda na vice-lanterna.
O segundo tempo veio e o jogo ganhou contornos dramáticos. O Lille sabia que o empate não era o melhor dos mundos, mas já seria muito mais satisfatório do que uma derrota. O Toulouse, em compensação, tentava segurar os três pontos que poderiam lhe assegurar a permanência na Ligue 1.
Com tanta tensão no ar, bastou ao Lille forçar os chutes de longe. Bissouma e Thiago Mendes, que entrou no segundo tempo, forçaram Alban Lafont a fazer defesas difíceis. Só que Lafont, aliás, subestimou Bissouma em uma falta aos 35 minutos. A distância era longa, é verdade, e o time visitante tinha mandado seus homens mais altos para a área, pensando em uma possível cabeçada. Só que os dois solitários jogadores colocados na barreira foram um convite a finalização direta do malinês.
Bissouma acertou um chute de rara felicidade. O pé direito fez a bola voar como uma bala que sai de uma pistola. Ela deu a volta pela magra barreira armada com dois homens e só foi parar no fundo das redes de Lafont.
🔙Le jour où… @Yves_Bissouma offrait la victoire au LOSC à Toulouse (2-3, 6 mai 2018) 💥
— LOSC (@losclive) March 17, 2023
Avec cette victoire, le LOSC sortait de la zone rouge à deux journées de la fin du championnat 😱#TFCLOSC pic.twitter.com/EQDaLRCaWj
Ainda tentando digerir o gol tomado, o Toulouse se lançou ao ataque e ficou exposto aos contragolpes. No primeiro encaixado, Pépé foi lançado em profundidade e ganhou um presente do goleiro adversário. O atacante lillois ainda teria campo para correr e nem estava com tanta liberdade assim. Lafont achou por bem sair da meta e tentar dar o bote.
Nem conseguiu tentar.
Pépé o driblou com facilidade e, com a trave aberta, não desperdiçou e marcou o gol da virada lillois.
O 3 a 2 se sustentou até o último apito de Clément Turpin, determinando o fim do jogo. De imediato, Galtier, trajado com camisa social e um boné preto com o escudo do Lille, saiu pulando como uma criança. Ele sabia o peso daquela vitória, que tirava os Dogues da zona de queda pela primeira vez desde a 27ª rodada.
📺 Ce dimanche, les Dogues retrouvent le @ToulouseFC (dimanche, 15h).
— LOSC (@losclive) April 18, 2019
🔙 La saison dernière ? Le #TFCLOSC avait valu son pesant d'or…
Entre frissons 😱 et émotion 🤩, revivons ce match fou et renversant 👇 pic.twitter.com/ElA9Cv8K9o
Os três pontos conquistados na raça em Toulouse foram o impulso necessário para que o Lille assegurasse a continuidade na elite. Na rodada seguinte, também de virada, os Dogues bateram o Dijon por 2 a 1, em resultado que garantiu, com uma partida de antecedência, a permanência na Ligue 1 após os tropeços de Troyes e Toulouse – que ainda evitou a queda na repescagem.
A impressionante virada sobre o TFC é um marco na história recente do Lille. Isso porque nem o mais otimista torcedor lillois imaginaria o que viria dali pra frente. Sob a batuta de Galtier, os Dogues subiram de patamar, ficaram com o vice-campeonato em 2018/19 e ergueram o troféu da Ligue 1 em 2021. Dali em diante, garimpou alguns talentos como Victor Osimhen, Rafael Leão e o próprio Nicolas Pépé, que pode não ter explodido em outros clubes, mas que cravou seu nome na história lillois e foi personagem chave no jogo de ruptura de um time descendente para um futuro campeão.